Um pioneiro da fotografia de natureza no Brasil e sua busca pelo arredio e elegante lobo-guará - que foge não apenas das pessoas, mas também da destruição do seu habitat
|
O maior canídeo brasileiro encara seu perseguidor na serra da Canastra, em Minas Gerais. O tom da pelagem do animal se confunde com o dos altos capins típicos do Cerrado |
A ruiva exuberante é alta, ágil e esbelta. Desde antes do amanhecer acompanho suas andanças, tentando observar melhor seus hábitos secretos. É julho, faz frio na serra da Canastra, em Minas Gerais, e nessa época o lobo-guará, um animal noturno, caça até depois de o sol raiar. Meus pés estão molhados e doem de tanto andar. A loba cheia de estilo, que batizamos de Clara por sua pelagem dourada brilhante, finalmente se retira para dormir no meio de uma macega de arbustos. Eu faço o mesmo: tento descansar um pouco. Estou a apenas 20 metros de distância do seu esconderijo; é uma honra poder estar tão perto, em silêncio, desse carnívoro emblemático da fauna brasileira. Quando Clara sair de novo para buscar comida, no meio da tarde, será outra maratona para mim. Afinal, o território de um guará na Canastra pode chegar a 25 quilômetros quadrados.
|
Um guará avança pela imensidão dos campos abertos do interior de Minas Gerais. Sua área de distribuição\ sofreu drástica redução devido à expansão da agricultura no Cerrado. Atropelamentos e doenças transmitidas por cães domésticos agravam a situação da espécie, considerada ameaçada pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) |
Meu primeiro encontro com o lobo-guará foi no início dos anos 1980, no Santuário Natural do Caraça, em Minas Gerais. Os padres mantêm há décadas o hábito de cevar os lobos, regateando-lhes comida na calada da noite, para o deleite dos viajantes que ali se hospedam. Na primeira vez que testemunhei tal cena, fui tomado por sentimentos confusos ao ver um animal lindo, misterioso e selvagem subir aquelas escadarias centenárias para comer restos de carne e ossos, como se fosse um cachorro no quintal de casa. Observei um bicho altivo, de 1 metro de altura, sair do mato e aproximar-se receoso dos turistas que esperavam sua chegada para assistir ao espetáculo. Padre Zico chamava-o com voz de barítono: "Guará! Guará!" O lobo vinha, pegava um naco de carne e logo fugia, para comer na escuridão. Voltava mais uma vez, nervoso e assustado, e partia de novo com o rabo entre as pernas, antes mesmo de abocanhar outro pedaço. O cenário parecia perfeito: uma criatura magnífica da natureza exibindo-se diante de uma igreja de arquitetura gótica construída no fim do século 18. Para mim, contudo, aquilo era humilhante. Nas outras vezes que voltei ao Caraça, tentei ver lobos em seu ambiente natural, mas só consegui encontrar o guará na estrada, em visões fugazes - um vulto iluminado pelos faróis do carro.
|
Um guará avança pela imensidão dos campos abertos do interior de Minas Gerais. Sua área de distribuição\ sofreu drástica redução devido à expansão da agricultura no Cerrado. Atropelamentos e doenças transmitidas por cães domésticos agravam a situação da espécie, considerada ameaçada pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) |
O lobo-guará (chrysocyon brachyurus) é a maior espécie de canídeo da América do Sul. Sua compleição é a de uma raposa alta sobre pernas de pau. Seu jeito de andar já o difere de outros canídeos brasileiros, como o cachorro-do-mato (Cerdocyon thous) e a raposa-do-campo (Lycalopex vetulus): o guará move as duas pernas de uma das laterais ao mesmo tempo, depois as duas do outro lado - e não alternadamente -, o que lhe dá uma andadura ondulante, peculiar. Suas pernas longas e esguias são uma adaptação à cobertura de gramíneas do Cerrado - seu principal habitat -, por onde caminha sem dificuldade, altaneiro, podendo olhar longe em seu território de caça.
|
Frutos, sementes, roedores e aves como codornas (acima) integram a dieta do animal, que pesa em média 25 quilos. Diferentemente dos outros lobos americanos, o guará jamais se reúne em alcateias |
Os biólogos Leandro Silveira e Anah Jácomo estudam há 19 anos os grandes carnívoros do Parque Nacional das Emas, no sudoeste de Goiás. Para entender como os lobos compartilham os recursos naturais com a raposa-do-campo, os pesquisadores prepararam 82 armadilhas fotográficas para funcionar durante 24 horas em 113 locais ao longo das trilhas dos animais durante um ano. O número de armadilhas obedeceu à proporção das áreas dos três principais ambientes do parque - campo aberto, Cerrado típico e floresta. Com os horários em que os lobos foram fotografados registrados nas imagens, os biólogos mapearam o padrão de deslocamento dos dois canídeos na reserva. "O lobo concentra suas andanças de noite e no crepúsculo, mas às vezes também fica ativo em outras horas do dia. Já a raposa é eminentemente noturna", diz Silveira. Os biólogos examinaram ainda quase 1,7 mil amostras de fezes. Concluíram que frutos e outros vegetais compõem hoje 52% de sua alimentação. Como está sempre em movimento e depositando fezes que contêm mais de 20 espécies de frutos, o lobo torna-se um dos mais importantes dispersores de sementes do Cerrado. Eles se alimentam ainda de pequenos mamíferos, aves, répteis e insetos. "A dieta vegetal surpreendeu, pois o lobo é um animal carnívoro", conta Anah.
As fezes servem como pistas dos animais em minhas andanças pelos parques nacionais da serra da Canastra e das Emas.
Elas estão sempre em locais bastante evidentes: nas estradas de terra, sobre lajedos de pedra ou no topo de cupinzeiros, alguns com 2 metros de altura. (Eu rio sozinho ao imaginar um lobo nessa situação.) Esse comportamento nada tem de exibicionismo - ao contrário, é importante para a espécie. O guará é um animal solitário e monogâmico. Macho e fêmea só se aproximam na época da reprodução. Para se comunicar e afastar invasores de seu território, o casal usa vocalizações, como seu latido rouco, grave e alto, e o odor de urina e fezes depositadas em locais específicos.
A fêmea entra no cio por cinco dias, tem uma gestação de 65 dias e dá à luz três filhotes de pelagem marrom-escura, entre junho e setembro. Sua habilidade para proteger as crias impressiona. No Parque Nacional das Emas, uma vez me juntei à equipe de Leandro e Anah para rastrear a ninhada de uma fêmea marcada com rádio-colar. Ao longo de meia hora, seguimos os sinais de rádio que apontavam a presença dela a menos de 10 metros. Nem assim conseguimos localizá-la.
Desenvolvemos uma técnica para procurar os lobos: rodar de carro devagar pelas estradas, com o carona sentado na janela com o tronco para fora, de lanterna à noite e de binóculo durante o amanhecer e o crepúsculo. Quando avistamos um guará, estacionamos e seguimos a pé. Assim que localizei Clara na Canastra, telefonei para uma dupla de amigos fotógrafos de natureza que perseverava em vão em Emas: a belga Tui De Roy e o britânico Mark Jones. Depois de alguns dias juntos perseguindo Clara, conseguimos habituá-la à nossa presença.
Desde o amanhecer, acompanhávamos a loba pelos campos. Sabíamos logo quando ela registrava no meio do capinzal a presença de algumas de suas presas habituais, como um rato ou uma codorna. A expressão da loba mudava: ela se imobilizava, levantava a cauda e começava a se aproximar sorrateiramente do alvo. Então, suas narinas fremiam, as orelhas moviam-se independentes uma da outra para localizar a caça no solo e saltar com as duas patas dianteiras recolhidas para agarrá-la contra o chão. Quando o bote era certeiro - pouco mais da metade das tentativas -, a loba engolia a presa inteira, sem perder tempo. Também pudemos observar a associação, já descrita por biólogos, do falcão-de-coleira (Falco femoralis) com o lobo-guará em uma jornada de caça. Certa tarde, um casal de falcões seguiu Clara ao longo de uma encosta suave. Quando a loba assustou uma codorna amarela, ela voou piando e batendo asas, e os falcões mergulharam para capturá-la. As aves de rapina foram malsucedidas, mas Clara estava atenta e correu atrás dela - só que, desta feita, também falhou.
Na última vez que tentei rever Clara na serra da Canastra, um incêndio havia destruído o seu território. Os campos estavam carbonizados - era impossível para um lobo caçar naquele cenário desolado. Além dessas queimadas sazonais, estudos apontam que o Cerrado já foi reduzido a 30% da área original, devido à expansão da agricultura. A ocupação desse bioma fragmentou algumas das populações do guará, a ponto de colocar em risco a própria sobrevivência da espécie. Acuado, o lobo está invadindo áreas desmatadas de Mata Atlântica. Anos atrás, uma fêmea foi atropelada na via Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro, perto da cidade de Resende. Na mesma época, observei outro lobo na estrada para Visconde de Mauá, na mesma região fluminense. "A expansão de sua área de distribuição não vai garantir sua preservação", avalia Leandro Silveira. "Ao perder território, o lobo, faminto, se aproxima das zonas rurais e é recebido a tiros, já que muitas vezes ataca a criação de galinhas e outros pequenos animais domésticos."
Por onde andará Clara nos dias que correm? Espero que bem, circulando sorrateira em busca de comida pelos campos já recuperados do parque da Canastra. A convivência com ela foi marcante em minha longa carreira de documentarista ambiental. O lobo-guará é um animal sofisticado, ladino, que sabe como evitar contato com os seres humanos. Agora, essa raposa que anda sobre o alto do capinzal para ver melhor o que acontece ao seu redor terá de usar suas longas pernas e sua habilidade para fugir da ameaça que ronda seu habitat.
|
Um lobo boceja assim que desperta, por volta das 16 horas, antes de sair para uma nova jornada de caça |
|
No fim da tarde, na contraluz, a loba batizada de Clara pelo fotógrafo exibe seu pelo denso, comum no inverno, que garante calor nas noites e nos dias frios da serra da Canastra. "Em mais de 35 anos de documentação da vida selvagem no Brasil, foi a espécie mais difícil que retratei", conta Luiz Claudio Marigo |
Luiz Claudio Marigo-National Geographic Brasil