sábado, 20 de agosto de 2011

sobrevivente: Lobo solitário

Um pioneiro da fotografia de natureza no Brasil e sua busca pelo arredio e elegante lobo-guará - que foge não apenas das pessoas, mas também da destruição do seu habitat


O maior canídeo brasileiro encara seu perseguidor na serra da Canastra, em Minas Gerais. O tom da pelagem do animal se confunde com o dos altos capins típicos do Cerrado 
 A ruiva exuberante é alta, ágil e esbelta. Desde antes do amanhecer acompanho suas andanças, tentando observar melhor seus hábitos secretos. É julho, faz frio na serra da Canastra, em Minas Gerais, e nessa época o lobo-guará, um animal noturno, caça até depois de o sol raiar. Meus pés estão molhados e doem de tanto andar. A loba cheia de estilo, que batizamos de Clara por sua pelagem dourada brilhante, finalmente se retira para dormir no meio de uma macega de arbustos. Eu faço o mesmo: tento descansar um pouco. Estou a apenas 20 metros de distância do seu esconderijo; é uma honra poder estar tão perto, em silêncio, desse carnívoro emblemático da fauna brasileira. Quando Clara sair de novo para buscar comida, no meio da tarde, será outra maratona para mim. Afinal, o território de um guará na Canastra pode chegar a 25 quilômetros quadrados.
Um guará avança pela imensidão dos campos abertos do interior de Minas Gerais. Sua área de distribuição\ sofreu drástica redução devido à expansão da agricultura no Cerrado. Atropelamentos e doenças transmitidas por cães domésticos agravam a situação da espécie, considerada ameaçada pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês)  
 Meu primeiro encontro com o lobo-guará foi no início dos anos 1980, no Santuário Natural do Caraça, em Minas Gerais. Os padres mantêm há décadas o hábito de cevar os lobos, regateando-lhes comida na calada da noite, para o deleite dos viajantes que ali se hospedam. Na primeira vez que testemunhei tal cena, fui tomado por sentimentos confusos ao ver um animal lindo, misterioso e selvagem subir aquelas escadarias centenárias para comer restos de carne e ossos, como se fosse um cachorro no quintal de casa. Observei um bicho altivo, de 1 metro de altura, sair do mato e aproximar-se receoso dos turistas que esperavam sua chegada para assistir ao espetáculo. Padre Zico chamava-o com voz de barítono: "Guará! Guará!" O lobo vinha, pegava um naco de carne e logo fugia, para comer na escuridão. Voltava mais uma vez, nervoso e assustado, e partia de novo com o rabo entre as pernas, antes mesmo de abocanhar outro pedaço. O cenário parecia perfeito: uma criatura magnífica da natureza exibindo-se diante de uma igreja de arquitetura gótica construída no fim do século 18. Para mim, contudo, aquilo era humilhante. Nas outras vezes que voltei ao Caraça, tentei ver lobos em seu ambiente natural, mas só consegui encontrar o guará na estrada, em visões fugazes - um vulto iluminado pelos faróis do carro.
Um guará avança pela imensidão dos campos abertos do interior de Minas Gerais. Sua área de distribuição\ sofreu drástica redução devido à expansão da agricultura no Cerrado. Atropelamentos e doenças transmitidas por cães domésticos agravam a situação da espécie, considerada ameaçada pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês)  
 O lobo-guará (chrysocyon brachyurus) é a maior espécie de canídeo da América do Sul. Sua compleição é a de uma raposa alta sobre pernas de pau. Seu jeito de andar já o difere de outros canídeos brasileiros, como o cachorro-do-mato (Cerdocyon thous) e a raposa-do-campo (Lycalopex vetulus): o guará move as duas pernas de uma das laterais ao mesmo tempo, depois as duas do outro lado - e não alternadamente -, o que lhe dá uma andadura ondulante, peculiar. Suas pernas longas e esguias são uma adaptação à cobertura de gramíneas do Cerrado - seu principal habitat -, por onde caminha sem dificuldade, altaneiro, podendo olhar longe em seu território de caça.
Frutos, sementes, roedores e aves como codornas (acima) integram a dieta do animal, que pesa em média 25 quilos. Diferentemente dos outros lobos americanos, o guará jamais se reúne em alcateias 
 Os biólogos Leandro Silveira e Anah Jácomo estudam há 19 anos os grandes carnívoros do Parque Nacional das Emas, no sudoeste de Goiás. Para entender como os lobos compartilham os recursos naturais com a raposa-do-campo, os pesquisadores prepararam 82 armadilhas fotográficas para funcionar durante 24 horas em 113 locais ao longo das trilhas dos animais durante um ano. O número de armadilhas obedeceu à proporção das áreas dos três principais ambientes do parque - campo aberto, Cerrado típico e floresta. Com os horários em que os lobos foram fotografados registrados nas imagens, os biólogos mapearam o padrão de deslocamento dos dois canídeos na reserva. "O lobo concentra suas andanças de noite e no crepúsculo, mas às vezes também fica ativo em outras horas do dia. Já a raposa é eminentemente noturna", diz Silveira. Os biólogos examinaram ainda quase 1,7 mil amostras de fezes. Concluíram que frutos e outros vegetais compõem hoje 52% de sua alimentação. Como está sempre em movimento e depositando fezes que contêm mais de 20 espécies de frutos, o lobo torna-se um dos mais importantes dispersores de sementes do Cerrado. Eles se alimentam ainda de pequenos mamíferos, aves, répteis e insetos. "A dieta vegetal surpreendeu, pois o lobo é um animal carnívoro", conta Anah.

As fezes servem como pistas dos animais em minhas andanças pelos parques nacionais da serra da Canastra e das Emas.

Um lobo boceja assim que desperta, por volta das 16 horas, antes de sair para uma nova jornada de caça 

No fim da tarde, na contraluz, a loba batizada de Clara pelo fotógrafo exibe seu pelo denso, comum no inverno, que garante calor nas noites e nos dias frios da serra da Canastra. "Em mais de 35 anos de documentação da vida selvagem no Brasil, foi a espécie mais difícil que retratei", conta Luiz Claudio Marigo  
Luiz Claudio Marigo-National Geographic Brasil