domingo, 6 de fevereiro de 2011

Harpia: rainha das selvas

Diante da devastação das florestas, o destino da Harpia, maior ave de rapina das Américas, parece estar mesmo nas mãos dos pesquisadores. No Brasil, eles estudam seus ninhos e trabalham com reprodução em cativeiro para conservar as últimas populações da espécie





Até chegar a Parintins, no Amazonas, foram 24 horas de barco desde Manaus, Rio Negro abaixo. Depois de mais três horas numa caminhonete, selva adentro, já avistávamos nosso primeiro ninho de harpia. Ao meu lado, o veterinário venezuelano Alexander Blanco observava um filhote e ouvia seus piados. Ao fundo, porém, o ronco da motosserra anunciava uma área de extração ilegal de madeira. O caboclo João Ailton passa carregando uma tora. "Estamos cortando há 10 dias, mas só ontem fui avisado de que tinha um filhote de gavião-real lá em cima. O bicho é grande, né?", fala, sem espanto.
Foi uma situação típica. O comércio da madeira, a caça, a pecuária e a agricultura têm sido uma ameaça às harpias nas florestas tropicais de toda a América Latina. O declínio da espécie está diretamente ligado ao extermínio de seu habitat, já que a ave não tem um predador natural - com até 1,20 metro de altura e envergadura de 2,5 metros, está no topo da cadeia alimentar.
Suas garras podem capturar grandes mamíferos, como as preguiças e os macacos, cujas ossadas têm sido alvo de um dos estudos do biólogo Benjamin da Luz, na Amazônia. Em setembro de 2005, ele e o professor Marcial Cotes localizaram o primeiro ninho de harpia da Bahia, na RPPN Estação Vera Cruz, em Porto Seguro - o segundo encontrado até hoje na mata Atlântica.
O achado é uma esperança para a salvação dessas aves, para que elas continuem honrando as raízes de seu nome na mitologia grega: as "harpias" eram deusas que representavam as tempestades, descritas como donzelas com corpo de abutre, garras de águia e cauda de serpente.




Preservação dos ninhos
Na Amazônia, onde as harpias possuem sua maior população viável em todo o mundo, os ninhos ficam no mínimo a 25 metros de altura - podem chegar aos 50. O uso de técnicas verticais, como o rapel, é essencial na captura de filhotes para estudo, com a instalação de radiotransmissores, nas florestas alagadas de Manacapuru e nos bosques de terra firme de Parintins. Os trabalhos fazem parte do primeiro estudo brasileiro sobre a harpia em seu habitat, coordenado pela bióloga Tânia Sanaiotti no Instituto de Pesquisas Amazônicas (Inpa).
Na escola da comunidade do Lago do Cururu, em Manacapuru, Tânia discorre para os alunos sobre a importância da preservação dos ninhos. "O intuito é fazer com que o gavião-real faça parte da vida deles, e seja visto como um amigo, não como uma ameaça", diz.




Bom sinal
Um filhote abre suas asas no alto da floresta, no Amazonas, diante da carcaça de uma preguiça deixada pela mãe há pouco no ninho. Quando completar dois anos, idade da sua maturidade plena, a jovem harpia terá que começar a caçar, pois os pais começarão gradualmente a levar menos comida para ela. Pesquisas realizadas no Panamá comprovaram que uma harpia adulta caça de 250 a 300 presas por ano, entre primatas, grandes aves e preguiças.
A harpia é um dos melhores indicadores da saúde do ambiente em que vivem, e tornou-se um vetor da conservação da biodiversidade das florestas tropicais. Já é considerada a ave símbolo do Panamá e também do estado Bolívar, na Venezuela.
Reprodução em cativeiro
O mineiro Roberto Azeredo trabalha com as harpias desde 1994, quando recebeu um macho vindo da Fundação Zoobotânica de São Paulo. Criador com experiências de sucesso com cracídeos como o mutum-do-sudeste, ele obteve um feito inédito em 1999: o nascimento de um filhote em cativeiro criado pelos pais.
Hoje, Azeredo já possui um plantel de 25 harpias. "Meu objetivo é devolvê-las para seu habitat", diz, defendendo que a reprodução em cativeiro é fundamental para a conservação. Ele e a bióloga Tânia Sanaiotti elaboraram em 2005 um projeto de reintrodução na mata Atlântica, onde a espécie está muito fragilizada. Conseguiram autorização do IBAMA e, agora, buscam financiamento e a área adequada para a soltura.

Texto e fotos por João Marcos Rosa
Revista National Geographic